Abaixo-assinado Por Uma Nova Secretaria de Cultura do Município de Goiânia: manifesto de defesa a um estado de direito dos artistas e demais produtores de arte
Para: Exmo. Sr. Paulo Siqueira Garcia Prefeito de Goiânia
Excelentíssimo Senhor,
Tomando por vistas o atual momento em que a gestão de Vossa Excelência encontra gloriosas odes de anseios e oportunidades de realizações para mais uma etapa de trabalho, cremos, cônscios do cumprimento dos compromissos de campanha junto ao referendo popular, vimos, por meio deste documento, refletir, propor diálogo, ideias e, sobretudo, com fundamentos reivindicar direitos e ajustes no que se refere às questões que envolvem a Secretaria Municipal de Cultura.
Senhor Prefeito, é fato largamente debatido e conhecido por toda sociedade a gama de problemas referentes a crimes de gestão, fraude e toda a sorte de casos de corrupção, já investigados e identificados pelo ministério público, junto aquela secretaria. Por outro lado, não é novidade, para quem está por dentro do assunto, o infortúnio das tardias soluções implementadas no aparelho gestor daquele órgão por meio de vossas decisões, no momento em que substituiu o anterior secretário por outro sem sequer consultar a comunidade envolvida. Soluções imediatas para resolver um problema. Soluções, porém, “incongruentes” com o “verdadeiro caráter de servidão pública”, apresentando-nos uma face completamente desfocada da tradição democrática sempre defendida pelo idealismo de seu partido, quando, outrora, sob a guarda luzente de gestores sensíveis e dinâmicos, abrilhantou naquele órgão um marco de trabalho e esperança para toda sorte de produtores de arte da nossa querida cidade. Referimo-nos à gestão do Sr. Pedro Wilson quando, na dianteira daquele movimento, fomos partícipes na escolha direta indicando para comandante da pasta o Ilustre Professor Sandro Ramos de Lima.
Naqueles anos de seca foram aradas as terras e plantadas sementes fundamentais que, em tese, já deveriam apresentar frutos desenvolvidos, maduros e de caráter ético superior, como resultante de processos revolucionários em uma área que, historicamente, sempre foi marginalizada pelo poder público.
Vivíamos, naquele instante, Senhor, um momento decisivo para a ampliação dos saberes, dos fazeres e das participações democráticas populares no intuito de acompanhar o acelerado processo global do mundo da produção de arte e dos movimentos multiculturais no país.
Contudo, eis que o flagelo e o inóspito joio se apossam do trigo semeado, tornando a seara confusa e com severos sentimentos de individualismo e competitividade. Assim, Senhor Prefeito, sem que percebêssemos a erva daninha foi crescendo e suas raízes sufocando a planta gloriosa. O que colhemos hoje, Ilustre Senhor: escândalos, más feições e indignações de toda a sorte e por toda a parte que se espalham pelo território nacional. Somos mal falados, mal vistos, mal interpretados.
O que desejamos e concitamos de Vossa Excelência é o apoio irrestrito na compreensão de que não podemos mais perder tempo, e nos auxiliar no soerguimento daquela vela casa. Assumir as rédeas de uma gestão pública é tomar decisões que contemplem o que é necessário e fundamental para que a máquina administrativa não emperre e que, por mais que os resultados não transpareçam tanto desenvolvimento como desejamos, pelo menos não apresentem perda das conquistas já obtidas.
Excelentíssimo Senhor Prefeito, o que queremos, de fato, é gozar do poder de indicar uma nova equipe gestora para a atual Secretaria Municipal de Cultura (composta de um secretário,sub-secretário e cinco coordenadores de áreas), por entendermos que somente nós artistas podemos fazê-lo com êxito e presteza, conforme abaixo fundamentamo-nos.
Por que os investimentos nessa área são tão escassos, miseráveis, e tratados como fundo perdido se sabemos perfeitamente que investir ali é investir na alma e na experiência sensível das pessoas e que isso jamais se perde? Por que tamanha desvalorização dessa área do saber se, a bem da verdade, é uma área tão necessária à reflexão, à ressignificação do conhecimento, ao registro da história e das transformações do espírito humano?
Por que o aparelho infra-estrutural que forma o conjunto SECULT-Goiânia encontra-se entregue ao abandono da manutenção e do descaso, com carências que vão desde técnicos para manutenção de salas de teatro até o absurdo da falta de papel e tinta para impressora?
Nesse ínterim, a principal questão que emerge é a que coloca em xeque o porquê das produções de arte em Goiás serem tão desprezadas e desrespeitadas se vivemos em meio a um mundo que opera basicamente por representações artísticas, ou seja, que se comunica cada vez mais com base em estética cênica, literária, sonora, imagética e cinética?
Será dessa maneira que esperamos enredar o protagonismo nacional de “cidade com melhor qualidade de vida do país”? Como querer saltar do térreo ao décimo terceiro andar, sem se submeter às leis da gravidade, excelentíssimo senhor? Sem dúvida alguma seria hipocrisia de nossa parte querer "ser o que não somos" ou "negar ser o que somos" apenas por "querer", ou seja, por uma imposição de desejo. O sociólogo polonês Zygmunt Bauman, em seu livro "A Modernidade Líquida", é enfático em seu posicionamento quando questiona o fato de querermos “operar o mundo e, por contraste, ser ‘operado’ por ele,” sem entender como ele opera. (BAUMAN, 2000, p. 242).
Isso nos leva a refletir nos fundamentos e transformações que operam no campo da arte e da Cultura. Na última metade do século XX, a arte e a Cultura tornaram-se elementos determinantes ao desenvolvimento da rede de saberes sociais surgidos. O período marcado pelo pós-guerra deflagrado nas nações europeias e estendido para o resto do mundo emergiu como signo de um novo tipo de renascimento nas percepções e visões críticas dessas culturas. A necessidade de união e de soerguimento epistemológico do sentido do “humano”, de pensar e agir sobre um “bem estar social” orientou toda uma rede de ideias ao encontro de se estabelecer um novo construto de comunidade: o estabelecimento de trocas e subjetividades. Hoje, depois de sérios danos causados pela desmedida sede do capital esse sistema encontra-se abalado pelo indescritível sentimento de egoísmo e competitividade material que se alojou no bojo dessas sociedades.
Assim sendo, como uma das mais eficazes formas de compreensão da realidade, nunca na história da humanidade a cultura, pela perspectiva de seus novos significados (saberes e fazeres humanos), fora tão valorizada. Segundo o sociólogo inglês Stuart Hall, em seu livro "A Identidade Cultural na Pós-modernidade",
[...] a cultura é agora um dos elementos mais dinâmicos – e mais imprevisíveis – da mudança histórica do novo milênio. Não devemos nos surpreender, então, que as lutas pelo poder deixem de ter uma forma simplesmente física e compulsiva para serem cada vez mais simbólicas e discursivas, e que o poder em si assuma, progressivamente, a forma de uma política cultural. (Hall 1997, p.97).
Desse modo é que conseguimos compreender que as duas guerras e os diversos conflitos armados, na dinâmica compulsiva do consumo, da produção, do poder econômico, do ostracismo e da intolerância pelas diferentes formas de representação do diferente, mostraram-nos que o patrimônio cultural de um povo não reside apenas nas fachadas, nas formas materiais ou na ornamentação da beleza metropolitana das grandes cidades e, muito menos, nos resquícios que sobrara da tradição clássica dos grandes gênios da arte, já que o sentido de arte também fora abalado com as novas transformações. Reside, antes de tudo, na capacidade moral e ética (intelectual) de um povo em saber se reconhecer pela linguagem e pelos signos, e que se permite comunicar no encontro com o outro, com o diferente, com a diversidade, com a multiculturalidade e na busca de uma saída magnânima do isolamento e da solidão.
A consequência desse processo, Senhor Prefeito, foi o alto investimento na proliferação dos saberes culturais, tomando como carro chefe os conhecimentos da cultura que, sobremaneira, expressam fenômenos artísticos, entendendo-os não como “a cultura” em si, mas como partes de um “sistema cultural”, por que a arte como fenômeno cognitivo e seus canais de expressão (cênicos, sonoros, visuais, literários, audiovisuais) tem maior poder de penetração no bojo dos processos indenitários dos indivíduos.
A partir daí as diversas expressões da arte tornaram-se ícones de representação e modos de visualização dos saberes que passaram a ser exportados como arquétipos, signos de linguagem e representações simbólicas de toda sorte, configurando, em quase todas as partes do planeta, uma rede de conhecimentos e significados.
Hoje, Senhor Prefeito, diante dessa rede de influências, temos duas escolhas muito claras: entender como ela se processa e nos tornarmos sujeitos protagonistas da mesma, ou continuar sendo processados por ela como figurantes, desfocados e em segundo plano no quadro cinematográfico da contemporaneidade.
Nada mais legítimo, pois, que os próprios artistas e produtores de arte sejam os responsáveis na indicação e escolha das pessoas que irão gerir a secretaria que trata de seus interesses e, por extensão, dos interesses da sociedade. Nada mais válido que busquem eleger pessoas sensíveis, honestas, que amam o que produzem e demonstram amar aqueles que produzem. Pessoas que se entregam ao trabalho sem maiores interesses a não ser o de servir ao próximo e auxiliar no plantio e na colheita de frutos saudáveis que, certamente, o futuro nos promete se nos dedicarmos agora e de imediato.
Certos de contarmos com o apoio de Vossa Excelência e de toda a sociedade goianiense pelas causas da arte, subscrevemo-nos.
Franco Pimentel
Arte educador, Ator e Diretor de Teatro.
Diretor da Companhia Mínima de Teatro
Presidente do Instituto Ciranda de Cultura e Arte - INCCA